Palestra proferida pela professora Vládia Mourão na Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil - AJEB-CE
quarta-feira, 21 de dezembro de 2016
SAMUEL RAWET SOB A ÓTICA DE VLÁDIA MOURÃO
Palestra proferida pela professora Vládia Mourão na Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil - AJEB-CE
O TEMPO NA LITERATURA DE SAMUEL
RAWET
Considerado como um renovador na nossa
literatura, “uma espécie de pioneiro, de visionário das novas conquistas e
pesquisas do conto brasileiro de hoje”, Samuel Rawet, chegou “a desorientar a
crítica em relação aos seus valores estéticos”. O fato é que os estudiosos, os
críticos mais tradicionais, “alicerçados em valores tidos por consagrados, não
encontravam em sua obra as costumeiras indicações da elaboração do gênero entre
nós”.(1)
Samuel Rawet apresenta, em sua escritura,
características bem marcantes, como a discussão dos problemas literários pela
própria literatura, numa espécie de metatexto, revelando pelo menos duas
funções de extrema e aguda consciência de seu papel de escritor: a arte
literária por excelência e o exercício da crítica literária.
Movido por esse intuito, sua linguagem deixa
de ser apenas um veículo para a formalização de enredos e condução de ideias e
passa a ser parte integrante do processo de criação, ou seja, os “seus recursos
linguísticos não estavam somente a serviço de um estilo, de um certo modo de
escrever bem, e sim, em função do mundo a ser criado como expressão”.(2)
Samuel Rawet possui aquilo que Ernesto Sábato
vai qualificar de “a condição mais preciosa do criador, o fanatismo”. E ressalta
que é preciso ter uma obsessão fanática pela criação e que nada deve antepor-se
a ela. O escritor deve sacrificar qualquer coisa em função da criação, pois sem
esse fanatismo nada de relevante poderá ser realizado.
Aliás, há duas atitudes que dão origem aos
tipos fundamentais de elaboração ficcional: ou o escritor escreve de forma
lúdica, para entretenimento seu e dos leitores, para distração, para buscar
momentos agradáveis; ou ele escreve para investigar e tentar compreender a
condição humana. O texto lúdico é prazeroso. O texto problemático é
inquietante, produz um desassossego. Por isso, concordamos com o pensamento de
Maurice Nadeau, ao afirmar que inútil é o livro que deixa o leitor e o escritor
da mesma forma que eles eram antes. E cita como exemplo O processo, de Kafka, texto que causa impacto no leitor seja qual
for seu tempo e sua circunstância.
Assim, dentre as múltiplas feições que
assume, além de possibilitar a articulação das palavras, a linguagem é fonte de
tensão, prazer e medo; a linguagem é potencializadora dos sentimentos humanos.
A linguagem articulada pelo homem, através da palavra proferida, é monopólio do
próprio homem, e Samuel Rawet trabalha a palavra com maestria e destreza
inigualável.
Mesmo sendo um artífice da palavra, dentro de
uma perspectiva histórica, os estudos da literatura registram que na época de
sua estreia, Samuel Rawet não conseguiu chamar a atenção do grande público para
seu livro Contos do imigrante,
coletânea que deixava o restrito círculo de leitores perplexos, totalmente
desprovidos de apoio para realizar sua apreciação, juízo ou julgamento, pois o
escritor reunia ali contos herméticos, subjetivos, muitas vezes mergulhados em
densa atmosfera de angústia.
Além do que, seus textos estavam, muitas
vezes, a questionar os problemas ficcionais, num entrecruzar de quase ficção e
quase realidade. Como analisa um de seus personagens, observando, com certa
vigilância, que “seus primeiros contos tinham um ranço didático, narravam com
precisão uma história e um ambiente, até que um dia descobriu que esse ranço
era a própria negação do ato de criar” e que, por isso mesmo, “a precisão era
uma pretensa hipertrofia de um olho pouco exigente”.(39)
Em inúmeros contos de Samuel Rawet
encontramos a predominância da discussão em torno de diversas propostas
literárias. Realmente, ele tematiza, via de regra, sobre fatos de extrema
singularidade e pouca significação como enredo. Muitas vezes, seus textos
constituem-se de narrativas que não são contáveis como história, pois para o escritor
não importa o que se conta, mas como se conta.
Nesse sentido, podemos afirmar que a sequência lógica da narrativa é
totalmente desconsiderada em prol do modo de narrar. Assim, texto enquanto
texto. Literatura, necessariamente, abordando aspectos doutrinários, mas sem
aspas e citações didáticas. Um conto que teoriza o conto. O texto justificando
e interpretando o próprio texto.
Essa tendência foi evidenciada pelo crítico
Wilson Martins, duas décadas depois, numa série de artigos publicados pelo Jornal do Brasil, conforme se comprova:
Forma narrativa como valor autônomo na equação
romanesca: a maneira de narrar ganhou importância maior que a história narrada
e o caráter dos personagens; autor e leitor têm a consciência permanente desse
elemento retórico, quero dizer, a natureza deliberadamente artificial da coisa
literária. O autor chama a atenção para sua maneira de escrever e de contar, da
mesma forma porque o leitor não recebe autorização para esquecer o que está
lendo.(40)
Sobre a questão do tempo, propriamente dito,
em Samuel Rawet, com relação à sua produção literária, notadamente o conto, que
é o gênero que está em nosso foco de análise, encontramos o autor
entrecruzando, a um só tempo, no aparato linguístico, diversas dimensões
temporais.
O tempo objetivo registrado por meios
convencionais, que marcam o transcorrer inexorável do tempo – está presente na
obra de Samuel Rawet em inúmeros contos, na maioria das vezes, entrelaçado com
outras referências temporais. Porém, precisamente, em seu livro O terreno de uma polegada quadrada, considerado
por Hélio Pólvora como o mais “espontâneo dos seus livros”, Samuel Rawet
constrói, na maior parte dos contos, textos lógicos e bem delimitados no que
concerne à marcação do tempo.
Já o tempo subjetivo alcançando, na curta
narrativa, a intensidade e amplitude de uma onda diretamente proporcional à
experiência vital acumulada, se insere, de modo efetivo, em vários contos de
Samuel Rawet.
Na perspectiva temporal subjetiva, em que
atuam “fatores como idade, cultura, intensidade de fatos vividos”, como adverte
Raul H. Castagnino, “as crianças têm pouco diversificadas as perspectivas de
tempo; os adolescentes vivem a dimensão futura; o homem maduro sente o domínio
do presente; a velhice agiganta o passado”.(44)
Se no plano humanístico cabem tais
circunstâncias temporais, conforme leciona o teórico, o que se pensar das
variações temporais no plano literário, quando o ficcionista, a partir de
infinitas possibilidades, se encontra às voltas com personagens, fatos e experiências
vivenciadas no passado ou projetadas para um futuro incerto.
Diante destas considerações, ressaltamos que
no conto “O Jogo de Damas” (Diálogos, 1963)
há, em toda a sua extensão, a predominância do tempo subjetivo. A história é
protagonizada por dois personagens, enquanto jogam uma partida de damas. E toda
a narrativa se resume ao tempo dessa partida, que não se sabe ao certo quanto
tempo durou, no plano objetivo, mas que durante esse tempo indefinido, os
personagens vagaram, através do pensamento, pelo passado, através de flash
back.
Em se tratando de tempo psicológico, podemos
afirmar que ele se relaciona, predominantemente, com os valores afetivos,
quando o personagem nos envolve com seus problemas emocionais, nos levando para
dentro da narrativa, nos convidando a penetrar numa zona de conflitos e
situações de seu universo ficcional.
O tempo psicológico é, na realidade, um tempo
que se processa sem padrão de medida, representando um eterno presente, intuído
pelo “eu” de cada um, independentemente de convenções.
Não há um antes nem um depois, assim declara o Narrador
de A hora da estrela, livro de
Clarice Lispector: "Como começar
pelo início, se as coisas acontecem
antes de acontecer?” Quando o Narrador afirma que "vivemos exclusivamente no presente" pressupõe a repetição
indefinida do que ocorre no relato. Uma referência ao que vem depois – "esta história será o resultado de uma visão
gradual" - afasta no mito o que poderia suceder num futuro real.
Nesta linha de raciocínio seguida por Clarice
Lispector, não conseguimos cronometrar o tempo que sugere o conto “A Porta” (Diálogo, 1963).
O texto inicia quando um anônimo personagem,
diante de uma placa de madeira, mergulha numa série de conjecturas e
hesitações, passando a fazer um levantamento de sua existência, sem nenhum
critério objetivo, realizando uma espécie de inventário de seus problemas
existenciais, através de monólogo interior, próprio de uma consciência em
disparos:
A mesma frase, as mesmas palavras, mas com outra
inflexão, bastaria para arrancá-lo do torpor que o dominara... E nunca se
destrói o ódio? Nunca se esterca o sarcasmo na frase feita com intenções mal
acobertadas? Sempre a carga demolidora no gesto visual, o desprezo no ato
comum?
Quanto ao tempo misto, possivelmente o de
maior realce na obra de Samuel Rawet, se caracteriza pela simultaneidade de
presente e passado, pelo entrecruzar de acontecimentos atuais com os já
ocorridos ou imaginados, numa fixação psicológica, através de flash back aplicado a narrativas que,
apresentam pouca significação e coerência como histórias contadas ou
vivenciadas.
Como imigrante,
embora tenha chegado ao Brasil ainda criança, Samuel Rawet carrega uma profunda
memória histórica, como componente de um povo que se reconhece como povo. E
nessa memória busca estabelecer o significado das suas origens e sua
identidade, justamente com o intuito de resgatar o passado no presente. Essa
sensação de estranhamento é justificável pela própria origem e raça do
escritor.
Ao avançarmos na análise dos textos, podemos
observar, por exemplo, que no conto “Uma Tarde de Abril”, pouca coisa acontece
digna de nota; os fatos, na verdade, parecem insignificantes. Uma reunião, uma
festinha de classe média, um homem entre os convidados, a entrecruzar seu
destino. Abstraído totalmente daquela estranha geografia de copos, garrafas,
pratos de salgados, cinzeiros, “envolvendo excessos de pontas sobre o tempo”,
fixa-lhe uma passagem, “um esforço para se desvincular do presente”. Em dado
momento pergunta a si mesmo: “até que ponto um homem é capaz de construir o seu
passado, construí-lo em detalhes”.
Este posicionamento do personagem, sem
qualquer apresentação, surgido de súbito, sem qualquer indicação, alude, de
imediato, para a característica básica da estrutura do conto, ou seja, a
contenção dos meios narrativos e, em consequência, a economia de espaço e de
tempo, ou até sua ausência completa, como se observa no seguinte trecho:
Um homem sem passado, sem nome, a cruzar por todos os
destinos igualmente anônimos, porém seguro nos seus passos e, sobretudo dotado
de forças suficientes para chegar ao extremo do itinerário percorrido.
Quanto à postura de Samuel Rawet como
escritor, vamos encontrá-lo em diversos momentos em pleno exercício de
humildade, tanto em relação ao seu fazer literário, que deu concretude a
monumental obra de engenharia literária, como em relação às atitudes puramente
humanas, quando, em depoimento carregado de emoção, narra o encontro que teve,
pela primeira vem, na época da construção de Brasília, com Oscar Niemeyer,
elogiando sua grandeza e erudição. Certo dia, contou Samuel Rawet que teve um
“troço” por dentro, quando encontrou Oscar Niemeyer, Joaquim Cardozo e Lúcio
Costa, seus mestres de engenharia.
Em relação à narrativa, em termos de
história, encontramos ao longo de sua obra uma variedade de temas e de
situações vivenciadas por personagens vários. Às vezes são pessoas
discriminadas pela sociedade como o imigrante e o vagabundo, encarnações
modernas que relembram o drama do judeu errante à procura de sua identidade;
outras vezes, são pessoas cheias de conflitos, dramas próprios de seres normais
e problemáticos que povoam nosso cotidiano.
Ao penetrarmos no universo literário de
Samuel Rawet, fica muito fácil nos identificarmos com seus personagens. Comum é
percebermos que habitamos ali naquele mundo recriado pela imaginação do
escritor. Corriqueiro é nos determos diante de um dos seus personagens e termos
a nítida impressão de que estamos diante nós, como num espelho a refletir a
nossa imagem, sem a menor possibilidade de distinguirmos o que é espaço e tempo
dentro de nossa consciência.
Mas quem é Samuel Rawet? Na realidade, ele
encarna bem a expressão “um conhecido desconhecido”. Quem o conhece por seus
textos, só tem duas reações: ou ama ou rejeita. Não há meio termo. A reação é
extremada.
Samuel Rawet, que nasceu precisamente em 23
de julho de 1929, na pequena aldeia de Klimotow, cidade composta na sua maioria
por judeus poloneses. Seus pais eram pequenos comerciantes, de origem muito
humilde. Samuel Rawet começou a estudar muito cedo numa escola que funcionava
ao lado da sinagoga, em sua terra de origem. É o próprio Rawet quem nos dá
conta de alguns referenciais cronológicos de sua infância:
O primeiro alfabeto que aprendi foi o ídiche – não
aprendi o hebraico propriamente. Aprendi as rezas, alguém me traduzia a frase
toda, a prece, o versículo. Tenho lembranças da vida na aldeia, lembranças do
inverno, da vida religiosa, da convivência com parentes, lembranças inclusive
de um mundo que não existe mais...
O modo de vida na Europa Oriental no início
do século XX era muito em torno da sinagoga e da casa de estudos (escola),
sempre situada em zonas rurais e organizada em comunidades. Esse fato
posteriormente veio influenciar o trabalho de Samuel Rawet, principalmente no
seu conto “O Profeta”, que nos dá a dimensão da intensidade das lembranças da
infância, marcada pelos hábitos antigos de seus antepassados.
Samuel Rawet chegou ao Brasil com sete anos
de idade, mesmo assim conseguiu guardar lembranças da primeira infância vivida
em sua terra, a tal ponto que essas reminiscências perduraram em sua obra e em
seu percurso existencial. O sentimento de errância, de solidão vai permanecer
na vida de Samuel Rawet até o fim, por via de consequência, seus dramas e
frustrações serão incutidos ao longo de sua literatura.
Em nossas pesquisas, descobrimos que Samuel
Rawet se mantém religioso até os quinze anos de idade. Mas na fase final da
segunda guerra, com o extermínio nos campos de concentração, muitos judeus se
perguntavam e até hoje se perguntam, “onde Deus estava enquanto os alemães
matavam seis milhões de pessoas”. É quando o surge o questionamento presente na
obra de Samuel Rawet e no meio da comunidade judaica: “Depois de Auschwitz é
possível continuar religioso?”. Esse tema vai ser discutido pelo escritor em
sua obra, através de alguns personagens como o “O Profeta”, que terá sua mudez
provocada por ser um sobrevivente, carregando para o resto da vida a
impossibilidade de comunicar a experiência traumática nos campos de morte.
Os conflitos do escritor não cessam nunca,
desta feita são de ordem literária. Sua postura humilde acarretou-lhe graves
problemas de autoestima. Quem nos conta é o próprio Samuel Rawet, ao confessar
que um
...tipo de leitura que me apaixonou e me empolgou – e
que depois me criou problemas tremendos – foi que se denominava de literatura
brasileira de época, o que eu chamo de “gigantes nordestinos”, Raquel de
Queiroz, Zé Lins, Jorge Amado. Este grupo me arrasou, andei deixando de
escrever por causa deles. Achava que não tinha nada a dizer diante deles.
Aliás, só mais tarde é que fui descobrir os autores que, estes sim, me estimularam
e me ajudaram, autores como Lima Barreto, Cornélio Penna e outros.
Já sua incursão pelo teatro foi frustrante.
Depois de algumas experiências mal sucedidas, Samuel Rawet destrói quase tudo
que escreve. Somente numa fase mais madura, quando já trabalhava como
engenheiro na construção de Brasília, é que começou a se interessar por um tipo
de teatro mais poético, escrevendo as seguintes peças: O papa do gueto; A noite que
volta e O lance de dados.
Numa fase anterior de sua vida Samuel Rawet
fez crítica de teatro, ainda no tempo em que fazia escola de engenharia. Depois
abandonou a atividade, conforme confessa:
“me desinteressei”, não obstante seu convívio com o ambiente teatral e
sua admiração pelo teatro expressionista de Ziembinski, que muito influenciou
em suas narrativas.
A partir dos anos 50, Samuel Rawet concentra
toda sua atividade intelectual no conto, gênero que vai se adequar aos seus
objetivos e para o qual dará valiosa contribuição. Com a publicação de Contos do imigrante, Samuel Rawet
conta-nos que teve uma grande surpresa:
Em 1951, 52, 53, eu ia publicando meus contos em
suplementos. Naqueles tempos todo jornal tinha um suplemento. A grande emoção
era sábado à noite ficar tomando chope com os amigos até de madrugada, pra
esperar o jornal de domingo às quatro da manhã a fim de ver se o conto havia
saído ou não. Era uma farra. Publiquei meus contos no suplemento do “Diário
Carioca”. Mandei o primeiro, eles aceitaram. Quando fui levar o segundo,
Prudente de Moraes Neto, diretor do suplemento, me perguntou se eu não tinha
mais coisas, disse que sim. Ele então me pediu que juntasse os contos e levasse
pra ele...; quando fui procurá-lo mais uma vez, ele me levou até a Ed. José
Olympio, me apresentou lá e dois anos depois o livro era publicado.
A repercussão que teve o livro não foi ampla,
sequer conseguiu chamar a atenção dos leitores, mas para o autor este fato não
teve importância. Afinal, ele não esperava nem mesmo sua publicação. Além do
que, em toda sua carreira este foi um momento extraordinário, único, que não
mais se repetirá.
Seu segundo livro Diálogo é publicado em 1963. Observamos que houve um intervalo
relativamente longo entre um livro e outro. Possivelmente uma indisposição de
Samuel Rawet para escrever, uma fase em que ele priorizou outras atividades,
como a engenharia e o trabalho de engenheiro calculista durante a construção de
Brasília.
Entre os anos de 1968 e 1969, Samuel Rawet
larga o emprego, vende seu apartamento e volta para o Rio de Janeiro, para, com
o dinheiro, financiar a edição de seus novos livros: O terreno de uma polegada quadrada, que ficou encalhado num
depósito, devido a um desentendimento com o editor e cinco volumes de ensaios. Em 1967 consegue uma co-edição com o
INL para publicar Os sete sonhos,
livro que recebeu o Prêmio Guimarães Rosa.
Samuel Rawet ainda publica com recursos
próprios, em 1970, A viagem de Ahasverus
à terra alheia em busca de um passado que não existe porque é futuro e de um
futuro que já passou porque sonhado, uma novela curta, mas com o mesmo
estilo e tema adotado em seus contos. Seu único livro esgotado até hoje foi Contos do imigrante, os outros continuam
esquecidos nas prateleiras ou depósitos de livrarias e distribuidoras.
Quando um escritor toma a atitude extremada
de financiar a publicação de seus livros é porque as dificuldades de participar
do mercado editorial já naquele tempo, ou sempre foi e será sempre difícil.
Conseguir sobreviver de literatura neste país, ser um escritor profissional é
privilégio para poucos.
Como escreve Ernesto Sábato em seu livro O escritor e seus fantasmas, “para o bem
ou para o mal, o verdadeiro escritor escreve sobre a realidade que sofreu e de
que se alimentou, isto é, sobre a pátria, embora, às vezes, pareça fazê-lo
sobre histórias distantes no tempo e no espaço”. E acrescenta que parece
difícil escrever algo profundo que não seja ligado de forma aberta ou
emaranhada à infância.
Justamente é o que ocorre com Samuel Rawet em
seu livro publicado em 1978, intitulado Angústia
e conhecimento – ética e valor, onde descreve seus conflitos com a família,
desde a fase da adolescência até a adulta, quando menciona que “a convivência
familiar estava abaixo de qualquer padrão mínimo de equilíbrio e decência”, ao
mesmo tempo em que relata os detalhes do rompimento com os irmãos por questões
de herança.
Na verdade, Samuel Rawet foi, em toda sua
vida, um solitário. Um homem imerso na sua angústia, na condição dramática de
exilado, na marginalização, que o fazia se identificar com o escritor Cruz e
Sousa quando afirma que
Judeu é isso, é aquilo, qualquer coisa parecida com o
que enfrentara pessoalmente em sua condição de mulato, e mulato é negro...
Nenhuma violência, nenhum obstáculo, concreto, um estado de espírito, apenas,
criar barreiras, um incômodo feito de miudezas que moem, trituram, dilaceram e
exacerbam pequenos impulsos, sonhos.
A herança que Samuel Rawet nos deixa é
valiosíssima, sua contribuição no âmbito da ficção, do ensaio, do teatro e da
filosofia nos traz, ao mesmo tempo, uma espécie de despertar da consciência
para a condição do homem no mundo, misturada ao encantamento provocado por suas
reflexões filosóficas e existenciais.
Conto e ensaio foram os dois gêneros que mais
frequentaram o universo literário do escritor e de forma simultânea, num
entrecruzar de indagações éticas e estéticas, conforme afirma:
Hoje a palavra mudou para mim. É pura ambiguidade em
relação ao real, e os dois extremos experimentados me convencem ainda mais:
delírio e ironia.
E
como o tempo passa depressa e para não cansar essa distinta plateia, encerro
minha fala citando Antônio Carlos Villaça, quando diz que no “princípio era o
nada; depois, apareceu Machado de Assis; depois, foi o nada, outra vez”. E
depois veio Samuel Rawet.
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