Senhoras, Senhores,
A literatura é destino e encantamento definitivo. Desde os salmistas bíblicos aos agentes da vanguarda contemporânea, os que escrevem obedecem a uma convocação. Um chamado definitivo e de tal modo irrecusável que ninguém ousa desobedecer, sob pena de ser atirado às cadeias eternas da loucura. Muitos, dentro da própria loucura, ainda produziram arte, numa prova categórica de que a propulsão para escrever é maior do que qualquer tragédia.
Da dor ou da alegria, da ternura ou da brutalidade, da objetividade explícita ou da subjetividade submersa, a palavra é a Estrada de Damasco, a conversão absoluta do homem comum num ser criador e, como tal, um parceiro de Deus.
Só a mão sedutora de um literato poderia convencer os judeus a sair do Egito para atravessar o deserto rumo aos rudes e áridos territórios da palestina, a Terra prometida, com a incrível descrição de que os cumes desolados da Judéia eram a “terra onde corria o leite e o mel”.
Só a mão primorosa de Shakespeare poderia traduzir tão artisticamente a nossa espécie, em Hamlet: “Que obra de arte é o homem! Tão nobre no raciocínio, tão vasto na capacidade. Em forma e em movimento, é como um Deus. A beleza do mundo, o exemplo dos animais!”
Só a mão lírica de Artur Eduardo Benevides poderia definir Fortaleza como a “Grande flor atlântica/plantada mais em nós do que no chão”.
A arte de traduzir sentimentos, descrever ou recriar realidades distingue certa casta de pessoas. Alguns com maiores atributos, outros com menor porte inventivo, todos, porém, descobridores e fazedores de mundos, pequenos ou grandes, por afeição do destino ou maldição dos deuses.
A inspiração é uma gravidez que acomete homens e mulheres. Pode ser abortada, interrompida, mas sempre acontecerão reincidências. Outras gestações haverão de chegar. E, uma vez pejada, a melhor solução é o parto. Alguns simplesmente confessam: escrevo ou morro.
Nem sempre encontramos a forma ideal de transmitir a ideia. Muitas vezes as interpretações críticas surpreendem os autores. Não fora aquela a intenção inicial. Cada olhar sobre o texto pode produzir uma nova história, porque os leitores é que realmente completam o trabalho do escritor.
Literatura é coisa muito séria. Através dela semeamos as uvas da esperança e restauramos as pontes destruídas, acendemos archotes nas noites tenebrosas e até recriamos a vida no inflexível corredor da morte.
A seca, a negligência administrativa, o desemprego, as oscilações do clima e as inconstâncias todas da terra nordestina levou-nos à sublimação poética, à fantasia ficcional, ao delírio da invenção literária. Pelos versos, pelas crônicas e pelos romances enganamos a fome, o medo e a dor.
Que Deus não nos negue pelo menos a compensação dos disfarces.
Hoje, minha emoção se multiplica ao falar sobre a inesquecível Rachel de Queiroz, dama maior da literatura brasileira e filha querida da Terra do Sol, paixão da minha infância e adolescência e admiração madura e consciente de minha formação literária.
É minha patrona na cadeira 15 da Academia Feminina de Letras do Ceará – AFELCE, o que muito me honra e me envaidece. Sua obra de romancista, cronista e teatróloga está entre as mais expressivas das letras nacionais de todos os tempos. Seu nome esplende entre os maiores criadores literários do país e, ultrapassando as fronteiras nacionais, seus livros foram traduzidos em muitas línguas e editados em vários países.
Cabe-lhe muito bem patronear uma cadeira em qualquer Academia, ainda mais a Feminina de Letras do Ceará porque Rachel é, assumidamente, uma criadora de perfis femininos. Em entrevista no ano de 1989 afirma: “Quase todas as minhas personagens importantes são mulheres. Mulheres destemidas. Elas, naturalmente, não representam a mulher forte que eu não consigo ser, mas a mulher forte que eu gostaria de ser.”
A professora Cleudene Aragão nos fala assim sobre Rachel: “A Rachel brasileira desvendava os caminhos tortuosos pelos quais o nordestino teve que passar para tentar a vida em outra terra, mas narrava, também, o modo como outros brasileiros, com os quais convivia e que aprendeu a conhecer através de seu trabalho literário, relacionar-se com o mundo”.
A relação da escritora cearense com o audiovisual não se pautou apenas por adaptações dos seus livros para o Cinema e a Televisão. Com participações pontuais e discretas, Rachel de Queiroz experimentou o trabalho de produção e roteiro em dois filmes brasileiros, entre eles, o primeiro do país a conquistar premiação em Cannes, na França. Rachel é autora de destaque na ficção social nordestina.
Nascida em Fortaleza, em 17 de novembro de 1910. Embora sua família tenha raízes em Quixadá, município onde a escritora mantinha parte da antiga propriedade de seu clã, a Fazenda Não Me Deixes. Rachel descendia pelo lado materno da estirpe caririense dos Alencar, parente, portanto de José de Alencar. Pelo lado paterno dos Queiroz, família fundamentalmente alicerçada em Quixadá e Beberibe, era filha do juiz Daniel de Queiroz e de Dona Clotilde Franklin de Queiroz.
Tinha apenas cinco anos quando a terrível “Seca do 15” varreu o Ceará, atingindo sobremaneira a região central, o que levou a família a emigrar para o Rio de Janeiro. No Rio, a família Queiroz pouco se demorou, transferindo-se para Belém do Pará, onde permaneceria por dois anos. Retornam ao Ceará, inicialmente para Guaramiranga e depois Quixadá. Em 1919 voltava o Doutor Daniel para Fortaleza. Rachel, em 1921, passou a estudar no Colégio da Imaculada Conceição, dirigido pelas Irmãs de Caridade, onde fez o Curso Normal, diplomando-se aos 15 anos, em 1925.
Repetir palavras de adultos era uma das coisas de que Rachel mais gostava. Ela reparava muito no palavreado dos mais velhos. Dona Clotilde, por exemplo, quando via a bagunça feita pela meninada, costumava dizer:
− Esse quarto está um caos!
Rachel achava linda aquela palavra e não tardou a aplicá-la em seu cotidiano. Tratou de inventar algo que combinasse com a dramaticidade da palavra e soltou entre os adultos:
− Estou com uma dor que é um caos!
Todos riram da menina! Tão pequena e já possuía uma dor sem tamanho! Ela ficou cismada com as risadas e não falou mais nada sobre as suas concepções de caos.
Meados do ano 1920, novidades na casa. A Irmã caçula Maria Luíza nascera.
A adolescente de 16 anos Rachel de Queiroz dividiu-se entre agulhas de bordar as roupinhas de pagão da recém chegada e maquinações para ousar o primeiro voo e enviar ao O Ceará, sob o pseudônimo de Rita de Queluz, uma carta aberta sobre a eleição da primeira Rainha dos Estudantes do Ceará.
O nome da pequena era uma homenagem à avó materna, falecida e cuja perda abateu Clotilde Franklin de Queiroz. A mãe de Rachel era uma pessoa muito romântica, levava tudo muito a sério, então, ficou de cama quando a mãe morreu. Rachel, então, tomou para ela a responsabilidade de cuidar da irmã e não gostava que ninguém lhe desse presentes, tudo tinha que ser feito por ela. No livro Tantos Anos, de memórias, que as duas irmãs escreveram juntas, a escritora conta que disputou com a mãe e com Antônia o direito de banhar a menina, de vesti-la, de passear com ela. E mesmo depois de casada, jamais abdicou de sua parcela de maternidade em relação à Isinha, nome carinhoso com o qual tratava a irmã, Maria Luíza.
O Professor e Mestre em Literatura, Miguel Leocádio, analisa a infância como rito de passagem da escritora. O amor à inocência, a descoberta da amizade, o início das relações sociais são características da infância que povoam a literatura de Rachel de Queiroz.
As cenas dantescas do sofrimento do povo do Ceará, mesmo daqueles mais afortunados, como seus pais, ficariam indelevelmente marcadas na memória da garota, que aos 20 anos, escreveria seu romance de estreia, “O Quinze”, que alcançou ampla repercussão no Rio de Janeiro e em São Paulo. Agitando a bandeira de fundo social, profundamente realista na dramática exposição da luta secular de um povo contra a miséria e as agruras da seca, a escritora provinciana projeta-se na vida literária do país.
Lançado em Fortaleza, em 1930, numa edição de apenas mil exemplares, custeada pelo pai da escritora, logo que chegou às mãos dos grandes críticos despertou atenção incomum. Rachel teve seu romance premiado pela Fundação Graça Aranha, em 1931, o que a incentivou a dar continuidade à produção de um novo livro, “João Miguel”, em 1932. Daí em diante foi um luminoso caminho de sucesso e toda essa lavoura de livros que abismou a literatura nacional até os nossos dias.
Declarava-se uma operária das letras e trabalhava todos os dias, mesmo depois de ter sofrido um acidente vascular cerebral.
A participação de Rachel de Queiroz na vida cultural do país é pontilhada de referências importantes. Durante 22 anos foi membro do Conselho Federal de Cultura. Representou o Brasil na 21ª Assembleia Geral da ONU, em 1966.
Foi convidada, embora tenha recusado pelo presidente Jânio Quadros, para assumir o Ministério da Cultura. A escritora foi distinguida com importantes prêmios literários, destacando aqui, três deles: o Prêmio Machado de Assis, o Prêmio Camões (equivalente ao Nobel, na língua portuguesa) e o Prêmio Jabuti, todos pelo conjunto da obra. Recebeu em 06 de dezembro do ano de 2000, o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
Foi a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras. Sua eleição, em 04 de novembro de 1977 para a cadeira 5 da ABL, causou certo frisson nas feministas de então. Mas a reação da escritora ao movimento foi bastante moderado. Numa entrevista, em meio ao grande frenesi que sua nomeação causou, declarou: “Eu não entrei para a Academia por ser mulher. Entrei, porque, independentemente disso, tenho uma obra. Tenho amigos queridos aqui dentro, quase todos os meus amigos são homens, eu não confio muito nas mulheres”. Foi um choque anafilático no movimento feminista. Rachel foi saudada por Adonias Filho, sendo a quinta pessoa a ocupar a cadeira 5 e tendo por Patrono, Bernardo Guimarães.
Depois da aprovação, da entrada de mulheres na Academia e da eleição de Rachel, surgiu uma questão que era preciso resolver o mais rápido possível: o fardão. Para os homens, o fardão é uma casaca, inspirada nas antigas fardas do corpo diplomático. Feito de tecido verde-escuro com bordados a ouro representando louros. A roupa completa custa cerca de R$ 30.000 e pela tradição, o fardão deve ser dado de presente ao novo acadêmico pelo Governo do Estado onde ele nasceu. Para as mulheres esse fardão certamente não ficaria bem. O que fazer? Foi a própria Rachel quem solucionou o problema. Ela imaginou um vestido longo, do mesmo tecido do fardão masculino, mas com apenas discretos bordados dourados, representando os louros tradicionais.
O traje para as acadêmicas foi desenhado pela estilista Silvia de Souza Dantas, a partir das ideias de Rachel. Ela acrescentou palmas douradas nas mangas
em forma de sino e no decote V e nesgas plissadas na altura do joelho. Em lugar de uma espada, acessório dos escritores eleitos para a ABL, as acadêmicas exibem um colar. Com a chegada da primeira mulher à Academia, seus colegas tiveram que cuidar de outro detalhe, antes desnecessário: a construção de um reservado feminino, de que a sede da ABL não dispunha.
No dia de sua posse, a Academia segue todo um ritual de recepção para o novo acadêmico. Nesse dia, todos têm que comparecer usando o fardão. A solenidade acontece no Salão Nobre ou Salão Azul. O novo acadêmico, antes da posse, fica recolhido por alguns minutos no Salão Francês, uma pequena sala na entrada da Academia, fazendo uma reflexão antes do momento solene. Três acadêmicos vão buscá-lo e o acompanham até o Salão de Posse. À mesa principal, ficam sentados o presidente da ABL, o presidente da República ou seu representante, os chefes de missões estrangeiras e ministros de Estado. Cabe ao novo acadêmico após a saudação, fazer o discurso falando dos antecessores de sua cadeira.
O que de fato emocionou Rachel foi ocupar a cadeira que foi de Raimundo Correia, um poeta que ela tanto lera quando menina. A partir da posse, Rachel passou a fazer parte da Academia e nunca aceitou nenhum cargo de chefia na Instituição e avisou que não o faria desde o princípio. O que ela sempre gostou mesma na ABL foi o convívio, as conversas em torno do chá acadêmico que acontece todas as quintas-feiras, antes das sessões, pontualmente às três da tarde. A escritora nunca escondeu quem era o seu maior amigo da Academia: Austregésilo de Athayde, presidente por 34 vezes. Ela já escreveu sobre ele dizendo que tinha sempre “uma fala de mel, uma mão de veludo”.
Transparente, coerente e sincera, com a sensibilidade nordestina à flor da pele, Rachel ofereceu-nos sempre uma permanente lição de fidelidade à sua vida de contadora de histórias. Poucos autores conseguiram, melhor do que ela, escrever com tanta desenvoltura e simplicidade. Sua prosa é sóbria, coloquial e escorreita. Trafega límpida, fagueira, impávida, pelos olhos do leitor, sem transbordamentos, sem excessos e sem retumbâncias, dentro de uma narrativa não raro dramática, com enfoque especial contra os estamentos preconceituosos da aristocrática sociedade de então.
A Sra. Rosita Ferreira, que cuidou de Rachel por muitos anos, relatou que a primeira vez que foi ao Rio de Janeiro foi no ano de 1977 para a posse da escritora na ABL. Disse que a posse dela foi a coisa mais importante que já presenciou. Até às cinco da manhã tinha gente fazendo discursos. Rachel tomou posse no dia quatro de novembro de 1977 e, por coincidência, morreu no dia 04 de novembro de 2003.
Dona Rosita ia todos os anos ao Rio para o aniversário da escritora. A última vez foi e permaneceu até sua morte. Relata ainda que Rachel sabia que estava chegando a hora de partir, porque no dia em que faleceu chamou-a e disse: “Rosita, eu hoje vou preparar um banquete para os meus pais, meus irmãos, minha filha e meus maridos, hoje vou para o Ceará. Mas, nesta viagem você não me acompanha, vou só”.
Isso foi numa segunda-feira, dia 03 de novembro de 2003. Ainda em citação de dona Rosita fala que Rachel disse: “Já conversei neste instante lá nos Altos, está tudo acertado, eu vou morrer e vou direto para o Céu”. E a amiga Rosita abaixou-se e disse-lhe baixinho, ao ouvido dela: “Quem já viu herege ir para o Céu”? Ela riu e disse que não se preocupasse que já estava tudo acertado. Disse-lhe certa vez que se morresse no Rio de Janeiro queria ser enterrada no túmulo do segundo marido, Oyama, não queria ser enterrada no Mausoléu da Academia. Se morresse no Ceará queria ser enterrada na Fazenda Califórnia, no túmulo de seu pai. Dona Rosita ainda revela que Rachel mesmo sempre se dizendo sem religião, todas as noites se benzia e rezava o Pai-Nosso e a Salve-Rainha.
Na manhã do dia 03, levantou-se, tomou o café como de costume, almoçou à mesa, pois a irmã Maria Luíza já chegara de viagem. Nesse mesmo dia teve duas isquemias, o lado direito ficou paralisado. Às 22 horas pediu para ir à sua rede. Ficou conversando e não parava um só instante. Às duas e meia da manhã, Dona Rosita diz que pediu para ela dormir, pois deveria estar cansada, mas a escritora disse que não podia dormir com a angústia que sentia. Ao passar a mão em sua cabeça, dona Rosita percebeu que estava ensopada de suor. A acompanhante foi chamada e trocaram-lhe a roupa.
Colocaram colônia que ela muito gostava e tentaram chamar o médico, mas a própria Rachel dizia que médico não resolvia aquilo.
Assim que Dona Rosita deitou-se a acompanhante a chamou e disse: “Dona Rachel não falou mais nada, está parada”. Surpresa, pois falara com ela até pouco tempo foi até lá passou a unha na planta do pé da escritora e nada, imóvel. Ali ela teve certeza da partida de Rachel. Faleceu dormindo em sua rede. Logo veio o médico, mas já não havia mais nada a fazer. Rachel estava serena, os olhos fechados. Partiu como um anjo.
Ela desenhou o fardão da Academia e com ele foi sepultada.
Deixou, aguardando publicação, o livro Visões: Maurício Albano e Rachel de Queiroz, uma fusão de imagens do Ceará fotografadas por Maurício com textos de Rachel.
Senhoras, Senhores,
Sua morte, nos enviuvou deixando-nos um imenso sentimento de solidão. Mas seu nome será sempre uma luz forte na Terra do Sol e em todos os rincões deste imenso país, onde quer que se abra uma página de sua criação mágica.
Hoje nesta manhã de minha alegria é provável que seu espírito esteja vigiando minha responsabilidade ao falar sobre ela. Agradeço-lhes a atenção e digo que me sinto cercada por suas personagens, que haverão de me acompanhar pela vida inteira.
Neste ano de centenário de seu nascimento é preciso todas as homenagens a esta grande dama da literatura.
Encerrando minha fala, dá-me a impressão que este Auditório foi transformado num grande alpendre sertanejo, no alpendre da Fazenda NÃO ME DEIXES e que vieram estar conosco as Três Marias, Dôra Doralina, a Beata Maria de Araújo, a Donzela e a Moura Torta e a valente e guerreira Maria Moura.
E, assim, na companhia benfazeja de meus amigos e das filhas da imaginação criadora de Rachel de Queiroz, entre as brisas do mar e o fogo do sertão, proclamo a felicidade, ao término dessa conversa.
Muito Obrigada!
Rejane Costa Barros
(Palestra proferida na sessão ordinária da AJEB-CE, dia 19 de outubro de 2010)
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