domingo, 29 de setembro de 2013
TRIBUTO À MEMÓRIA DO TROVADOR EZEQUIEL PINTO DE SOUZA - GISELDA MEDEIROS
A UM POETA QUE SE FEZ
ESTRELA
(para Ezequiel Pinto
de Souza – in memoriam)
Deixemos, então, que esse
murmúrio de águas correntes
embale nossa saudade.
Deixemos que as nuvens
movediças
desçam com seu olhar de
náufragos
sobre o peito das nossas lembranças.
Deixemos que essa música de
terra molhada
penetre em nosso coração
e acorde os versos do poeta
adormecido.
Deixemos que nossos olhos
volúveis
e cheios de dúvidas
perscrutem no espelho do
horizonte sombrio,
silencioso ancoradouro dos
sonhos,
a luminosidade daquela
estrela
pousada em nossa humana visão
na invisível forma de Poesia,
na invisível forma de quem,
serenamente,
foi projetar-se na pupila de
Deus,
sem inércia nem esquecimento,
sem amargura nem
fraquejamento,
porque a felicidade divina se
lhe fez sorriso.
Agora, é como depois de um
temporal,
e um anjo derramou sua taça
cheia de amor
sobre o grande rio da vida,
alagando-lhe as margens de
saudade.
terça-feira, 24 de setembro de 2013
UM TEXTO DE CELINA CÔRTE PINHEIRO
MAIS MÉDICOS SEM
MÁSCARAS
O programa de governo "Mais Médicos", gerador de
tantas polêmicas, fez-me voltar no tempo e recordar minha participação no
Projeto Rondon, em 1972, quando já doutoranda. A meta daquele programa era
inserir profissionais de diferentes áreas, sobretudo a médica, em cidades
brasileiras desassistidas e de poucos recursos. Fui designada para Corguinho,
no Mato Grosso. Prometeram-nos o deslocamento por avião. Exultei! Contudo, de
Ribeirão Preto a São Paulo, conduziram-nos de trem, por horas a fio, em um
percurso que seria feito confortavelmente, já àquela época, de ônibus, em
apenas quatro horas. Não havia assentos disponíveis e viajei a noite toda
sentada sobre minha mala. Apenas lá pelas cinco ou seis horas da manhã,
consegui sentar-me em um dos bancos desocupados pelos passageiros.
De São Paulo a Corguinho, fomos de ônibus. No total, quase
dois dias de viagem desconfortável e exaustiva. Porém, nosso sonho de ajudar e
colocar em prática o que havíamos aprendido, falava mais alto.
Foram 45 dias de trabalho, quando pude perceber que, por
trás do bem que fazíamos, havia, sobretudo, o desejo político de manutenção do
poder. A população era carente de tudo e não possuía noções mínimas de educação
sanitária. A cidade, por sua vez, destituída de saneamento básico. O experiente
prefeito sugeria o acréscimo de complexo B ao nosso receituário onde
predominavam os programas "Mais Médicos".
Nosso raciocínio se afunilava pela monotonia de
diagnósticos. Tampouco havia condição de algo mais... Nossa presença se
constituía uma bênção para a população extremamente carente e sem noção de que
as medidas eram meramente paliativas. Satisfazia-se com pouco. Saímos dali
enaltecidos pelos moradores e felizes com nosso exercício de solidariedade.
Eles, por sua vez, continuariam a ingerir água contaminada e a ter diarreia...
No atual programa, diferenças gritantes no transporte e no
receptivo. No mais, talvez a mesma farsa e o mesmo viés eleitoreiro.
Comprove-se sua efetividade através da comparação honesta, sem mascarar a
realidade, entre os indicadores atuais e após dois ou três anos do programa.
Sonhamos com a real melhoria da qualidade de vida da população!
Celina Côrte Pinheiro
Médica
domingo, 15 de setembro de 2013
UM OLHAR SOBRE "MOSAICOS", DE THEREZA LEITE - GISELDA MEDEIROS
Hölderlin nos assevera que é somente na profundeza do
sofrimento que ressoa em nós o canto vital do mundo.
Constatamos a veracidade de tal
assertiva, após a leitura de Mosaicos (Fortaleza, Expressão Gráfica e Editora, 2003), livro
de estréia de Maria Thereza Leite, no qual podemos visualizar, através da
intimidade da autora com a ficção, o drama visceral de suas personagens na
espantosa relação com o seu meio e com o social. Seu poder criacional emerge de
cada página, de cada conto lido, em que a grande solidão humana é o fio que
tece a túnica de suas personagens, da mesma maneira que é ela, a solidão, que,
ao se desprender do papel, em sua abissal existência, vem buscar o aconchego do
leitor, tal é a interação autora/leitor, para juntos entoarem seu canto vital.
Neste livro, vislumbramos uma
narradora fluente, conhecedora dos meandros da estrutura ficcional, aquela que,
penetrando numa atmosfera, por vezes irreal, é capaz de convencer seu leitor de
que as situações (por mais insólitas que sejam) vividas pelas personagens são
de incontestável plausibilidade.
A precisão com que
define as personagens, o detalhe, a narração vigorosa apresentam-se-nos sob
aquele tom tchekoveano que, indubitavelmente, é a arma principal para a
detonação do conflito.
O conto “Mosaicos”, que intitula o
livro, é, em nosso ver, o que mais condensa aquela atmosfera de ansiedade, face
à luta que Ana trava com a morte: Ana sabia desde pequena, do que
entreouvira entre sussurros e passamentos da mãe – a sua morte era esperada
muito cedo. /.../ Mas intuía que, se aquela doença nervosa mostrava-se
em ataques súbitos e rápidos, ela teria todo o resto do tempo – os momentos
intercalados – para viver.
Thereza Leite também trabalha,
nessa sua obra, o drama social deste terceiro milênio, em que, frente aos
avanços da tecnologia, o homem se debate angustiado ante violência, às drogas, à marginalização que o
levam para outros caminhos: a homossexualidade, a loucura, o adultério e o
suicídio.
Vejamos o destino de Jairo,
personagem do conto “O ‘olho da libélula’”: Atrevera-se a olhar o cenário,
percebendo as marcas das balas no muro. /.../ Poucos muros brancos. Muros
desenhados a limo./.../ Muros de lixo. /.../ Muros gravados à bala./.../
Respiro fundo, e o vejo sobre a mesa fria, pela última vez. Inerte. O olhar no
vazio. E brado meu mais alto gemido, como se fosse para um filho meu, nesta
sala de silêncio: - Logo você, Jairo! Logo você! Ou o drama interior de Jorge, em “A ave de
palha”: Faz tempo que elas vivem nessa simbiose. /.../ Elas pensam que eu
não percebo! Quanto a mim não sei explicar. Fui deixando como estava. /.../
Temos um outro triângulo, bem mais difícil de ser aceito: duas mulheres amigas,
um homem, e a promessa de um recém nascido. E ainda o conflituoso mundo
d’“O colecionador de vitrines”, a debater-se entre a sua realidade e o
preconceito social, até a sua opção de lançar-se “ao espaço, com a dignidade e a beleza de um
trapezista”: /.../ quando, à noite, uma insônia sem cura vinha perturbar o
seu sono, era o nome de Pedro que repetia bem baixo. Não havia como fugir à
sentença: os sons, os cheiros e os toques, ao povoarem a sua meninice, haviam
deixado um chão marcado de fortes lembranças, para sempre. E também o
delírio de Vicência, no conto “Um varal novo para ‘o inverno’”, em seu afã de
fazer bonecas, muitas bonecas “escuras e claras – iguais às moças dos retratos
encontrados no armário do quarto de despejo”, entre os pertences do marido
ausente: Compridos alfinetes, com a cabeça de bolinha colorida, espetavam o
peito dos bonecos de calça azul, prendendo as camisas de xadrez em inúmeros
pontos, como se fossem botões. Mas havia alfinetes desnecessários... Alguns,
espetados nas costas.
São assim, engenhosos, os
contos de Thereza Leite, em que a descrição, dentro de uma linguagem elegante,
serve não só de pano de fundo à ação de suas personagens que, de tão
impregnadas à paisagem descrita, chegam a confundir-se de tal modo que ela, a
paisagem, toma a ação das personagens, fundindo-se ambas num cenário ativo e
perquiridor. Vejamos este trecho de “A Angústia das Árvores do Parque”: Como
para me consolar, os oitis, pesados de frondoso verde, entrelaçados, me olharam
com olhos acolhedores. Os algarobos, com suas folhas encharcadas, traziam
pingos de lágrimas, nas pontas das suas folhas.
Poderíamos continuar, sem
nenhum sinal de canseira, a desbravar os caminhos da escritura de Thereza
Leite, se não fora a delimitação do espaço que nos cerceia uma visão mais
alongada desse universo rico e permeado de inusitados pousos, onde poderíamos
ancorar nosso olhar e descobrir paisagens magníficas, em que a dor e a solidão
humanas, longe de despertarem medos, nos entoariam seu canto harmonioso e
vital, pois é, nesses instantes, que nos descobrimos gente.
Que venham, pois, mais e mais Mosaicos,
trabalhados pela exímia mão dessa artesã da palavra que é Thereza Leite, para
enfeitarem nosso chão de pequenos peixes coloridos, estrelas do mar num
amarelo radiante, sóis alaranjados, verdes pujantes, tiras de céu infinito.
GISELDA MEDEIROS
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