terça-feira, 14 de setembro de 2010
Confira a introdução do "Folha Explica Machado de Assis": por Alfredo Bosi
Machado de Assis é considerado o melhor romancista brasileiro. E, à medida que a sua obra for traduzida para as principais línguas cultas, crescerá a probabilidade de seu nome incluir-se entre os maiores narradores do século 19. A sua estatura ombreia-se com a de alguns contemporâneos que alcançaram renome internacional: Zola, Maupassant, Verga, Eça de Queirós, Thomas Hardy, Henry James, Tchekhov.
Entre nós, o reconhecimento do valor da ficção machadiana já se fez em vida do autor. Os principais críticos literários do seu tempo, Sílvio Romero e José Veríssimo, definiram --negativa e positivamente_- as linhas mestras da fortuna crítica. Um grande escritor, mas menos brasileiro do que seria de desejar: era a avaliação de Sílvio Romero1. Um escritor profundo, introspectivo, universal: era a consagração de Veríssimo, que fecharia a sua História da Literatura Brasileira (1916) com um longo capítulo sobre Machado. Assim, a mesma ênfase na excelência da sua escrita, qualidade que conquistaria o consenso de todos os leitores, dava margem a juízos diferenciados, conforme o critério fosse nacionalista ou estético.
A crítica posterior matizou e afinal corrigiu as avaliações restritivas de Sílvio, mostrando com fartos exemplos a presença do Brasil, sobretudo do Brasil fluminense, escravista e patriarcal, em toda a obra de Machado. Com o tempo, o que o patriotismo romântico achara escasso, o historicismo sociológico passou a considerar como a substância mesma das situações e das personagens construídas pelo romancista.
Convém repensar o problema. Os vários métodos de interpretação do texto ficcional já acumularam suficiente lastro teórico para não se regredir a visões estereotipadas de um dos criadores mais complexos da nossa literatura. A escrita de um grande narrador trava uma luta, às vezes em surdina, com certas vertentes ideológicas e estilísticas do seu meio e do seu tempo: daí ser preciso acompanhar de perto o seu ponto de vista, que não só representa como rearticula, exprime e julga a matéria da sua observação. A fortuna crítica de Machado nos ajuda a rever o mapeamento do seu universo (esfera da mimesis), mas também nos chama para compreender o pathos e o ethos peculiar que lhe deram uma voz inconfundível no coro dos nossos narradores.
Pouco depois da morte de Machado, em 1908, leitores atentos como Alcides Maia e Alfredo Pujol insistiram na presença do humor predominante na segunda fase da sua obra, que se abre nos anos de 1880 com as Memórias Póstumas de Brás Cubas e os contos de Papéis Avulsos. Influências inglesas foram igualmente apontadas por ambos, vindo sempre à baila os nomes de Swift (1667-1745) e Sterne (1713-68). Entretanto, menos do que a procedência européia, interessa notar a vinculação, que se constatou desde o início, do humor machadiano com a sua visão pessimista da História e da Natureza.
Uma leitura de cunho naturalista buscou na vida do autor as causas desse pessimismo: a timidez, a morbidez, certos traços esquizóides, a gagueira, distúrbios oculares, em suma "a doença e constituição de Machado de Assis", título da obra clínica de Peregrino Jr., datada de 1938. Mas, se hoje parece não ter restado nada, ou quase nada, dessas tentativas de etiologia do humor de Machado, ficou, sem dúvida, o reconhecimento da expressão artística de uma difusa melancolia que permeia os enredos e os comentários desenganados do narrador. O que caiu de moda, até segunda ordem, foi a identificação de uma gênese psicossomática desse tom fundamental.
Augusto Meyer e Barreto Filho
A melhor crítica dos decênios de 1930 a 1950 concentrou-se no significado imanente das formas do humor, do tédio e daquele nonsense joco-sério tão entranhado na linguagem da segunda fase de Machado. O que Augusto Meyer e Barreto Filho exploraram nos seus ensaios poderia ser descrito como tentativas de leitura fenomenológica, embora nenhum deles faça praça do método. A caracterização que Augusto Meyer faz do homem subterrâneo é, nesse sentido, exemplar2. Atrás da "pseudo-autobiografia" de Brás Cubas ou do conselheiro Aires, ambos forjadores de memórias, póstumas ou tardias, opera um espírito de dúvida ou negação que relativiza todas as certezas e deita por terra as mais caras ilusões do leitor daquele tempo e do nosso. É essa voz, ou, antes, são os "cochichos do nada", que o crítico-poeta soube escutar e nos transmitir.
Para tanto, forjou conceitos lapidares. Por exemplo, o "perspectivismo arbitrário" de Brás Cubas, matriz do capricho que alinhava bizarramente as confidências do defunto autor. Ou a "atenção divertida e frouxa" que o narrador de Esaú e Jacó dá aos sucessos políticos do fim do Império e do início da República, meros pretextos que bóiam à superfície do texto romanesco. Outros achados: "a necessidade da renovação pelo esquecimento", tema do Memorial de Aires, onde les morts vont vite (vão-se os mortos depressa) e com eles os velhos. Enfim, a ociosidade "como o verdadeiro clima da obra romanesca" nas páginas da maturidade --conceito rico que funde o social e o psicológico, mas que nos faz perguntar por que os pensamentos dos rentistas desocupados dos romances se parecem tanto com as reflexões céticas do próprio Machado de Assis cronista dos anos 1880 e 1890.
Com igual mestria, Augusto Meyer detém-se no trato analítico de personagens e situações, pondo em relevo o cinismo de Brás, "solteirão desabusado", a loucura progressiva de Rubião, a sensualidade coleante de Capitu, a perpétua hesitação de Flora. E, voltando como leitmotiv, aquela "nota monocórdia" do narrador, que intervém com digressões escarninhas ou apenas desconcertantes. Atento aos mínimos movimentos da escrita, Meyer desenhou o mapa interno da mina onde ainda hoje escavam os melhores leitores de Machado.
Em termos de interpretação, a leitura de Barreto Filho vale por ter-se fixado em um núcleo de significados: o espírito trágico que enformaria a obra inteira de Machado, guiando os destinos para a loucura, o absurdo e, no melhor dos casos, a velhice solitária3. A matéria-prima da análise existencial de Barreto Filho é o sentimento do tempo, que suscita indefectivelmente a pergunta sobre o sentido da vida e da morte. Assim, embora seja rica de informações históricas, a Introdução a Machado de Assis acaba situando o roteiro ficcional do autor em um plano metafísico. A mesma tendência já encontrara prenúncios em Afrânio Coutinho, autor de uma Filosofia de Machado de Assis (1940). Não foi essa, porém, a vertente predominante na segunda metade do século 20, quando se buscou dar solidez à figura de um Machado de Assis brasileiro, sensível às contradições de nossa história social.
A Construção De Um Machado Brasileiro
A íntima relação entre o escritor e a sociedade brasileira do seu tempo começou a ser desvendada, como era de esperar, mediante a exploração sistemática da sua biografia. A primeira, e até hoje a melhor de Machado de Assis, foi escrita em 1936, por uma romancista estimável, dotada de singular acuidade psicológica, Lúcia Miguel Pereira4. Embora o seu foco de interesse fosse, em primeiro lugar, o homem Machado com as suas peculiaridades de temperamento e caráter, a biógrafa teve o cuidado de marcar a situação de classe, que, no caso, se configurou como um fenômeno de passagem.
O menino Joaquim Maria nasceu em 1839, em uma quinta no morro do Livramento, de pai mulato (neto de escravos) e mãe vinda ainda criança dos Açores com a família que migrava. Era um casal de agregados que recebia trabalho e proteção de uma rica viúva, dona Maria José de Mendonça Barroso, cujo marido fora senador no Primeiro Reinado. Dona Maria José foi escolhida para madrinha de Joaquim Maria. Aos dez anos, o menino fica órfão de mãe e, aos 15, entra em sua vida a madrasta, Maria Inês, que era mulata como seu pai e que, segundo alguns biógrafos, teria sido uma verdadeira mãe. No entanto, e aqui começa a armar-se o esquema psicossocial de Lúcia Miguel Pereira, nem bem entrado na adolescência, Joaquim Maria sai da chácara e muda-se para a cidade, dando as costas definitivamente à família e ao subúrbio onde até então vivera como dependente.
O rapazinho iria superar, pelo talento e pelo mérito de um esforço ininterrupto, a barreira da classe social a que suas origens humildes poderiam tê-lo relegado. Mas não se cortam impunemente os laços com o passado: os seus primeiros romances modelariam personagens determinadas a subir na vida, como Guiomar, em A Mão e a Luva, e Iaiá Garcia, no romance de mesmo nome. A ambição, misturada com um tanto de ingratidão e dureza nas relações familiares, seria racionalizada e, a rigor, justificada pela voz do narrador como necessária à sobrevivência da personagem. Segundo a intérprete, as figuras femininas que lutam obstinadas para vencer naquele contexto patriarcal dos meados do século seriam travestimentos da alma do jovem Machado, que nelas projetaria o drama recalcado da sua própria ascensão social. Daí por diante, hipocrisia, ingratidão e, no limite, traição seriam motivos recorrentes nos seus romances. A dinâmica social se interioriza e se faz psicologia individual. O narrador tem aguda consciência das forças modeladoras do meio. Sem essa consciência, alerta e sofrida, não seria, aliás, possível a formação do humor machadiano, que morde e sopra, levanta a máscara e logo a afivela de novo para subtrair a evidência, mas deixando em pé a suspeita.
A interpretação de Lúcia Miguel Pereira tem o mérito, ainda hoje não excedido, de fundir classe social, posição do indivíduo e estrutura psicológica diferenciada sem inflar nenhum dos componentes dessa tríade, sinal de um equilíbrio de método que a crítica puramente sociológica e o psicologismo não conseguiriam alcançar.
A construção do Machado brasileiro teria uma carreira longa e afortunada. Para os que negavam a presença da natureza tropical no seu cenário fluminense, Roger Bastide, sociólogo dotado de fino tacto literário, compôs um ensaio notável (em 1940) realçando a força das descrições de paisagens em quase todas as suas narrativas. Para os que acusavam Machado de absenteísta ou alheio aos problemas nacionais, Astrojildo Pereira, pioneiro nos estudos marxistas brasileiros, escreveu uma série de textos que comprovam o permanente interesse de Machado pelos assuntos locais, além das suas sempre citáveis afirmações da "unidade nacional" e do "instinto de nacionalidade". O ensaio antológico "Romancista do Segundo Reinado", que é de 1939, acompanha de perto os nexos "entre o labor literário de Machado de Assis e o sentido da evolução política e social do Brasil".
(Folha online)
Entre nós, o reconhecimento do valor da ficção machadiana já se fez em vida do autor. Os principais críticos literários do seu tempo, Sílvio Romero e José Veríssimo, definiram --negativa e positivamente_- as linhas mestras da fortuna crítica. Um grande escritor, mas menos brasileiro do que seria de desejar: era a avaliação de Sílvio Romero1. Um escritor profundo, introspectivo, universal: era a consagração de Veríssimo, que fecharia a sua História da Literatura Brasileira (1916) com um longo capítulo sobre Machado. Assim, a mesma ênfase na excelência da sua escrita, qualidade que conquistaria o consenso de todos os leitores, dava margem a juízos diferenciados, conforme o critério fosse nacionalista ou estético.
A crítica posterior matizou e afinal corrigiu as avaliações restritivas de Sílvio, mostrando com fartos exemplos a presença do Brasil, sobretudo do Brasil fluminense, escravista e patriarcal, em toda a obra de Machado. Com o tempo, o que o patriotismo romântico achara escasso, o historicismo sociológico passou a considerar como a substância mesma das situações e das personagens construídas pelo romancista.
Convém repensar o problema. Os vários métodos de interpretação do texto ficcional já acumularam suficiente lastro teórico para não se regredir a visões estereotipadas de um dos criadores mais complexos da nossa literatura. A escrita de um grande narrador trava uma luta, às vezes em surdina, com certas vertentes ideológicas e estilísticas do seu meio e do seu tempo: daí ser preciso acompanhar de perto o seu ponto de vista, que não só representa como rearticula, exprime e julga a matéria da sua observação. A fortuna crítica de Machado nos ajuda a rever o mapeamento do seu universo (esfera da mimesis), mas também nos chama para compreender o pathos e o ethos peculiar que lhe deram uma voz inconfundível no coro dos nossos narradores.
Pouco depois da morte de Machado, em 1908, leitores atentos como Alcides Maia e Alfredo Pujol insistiram na presença do humor predominante na segunda fase da sua obra, que se abre nos anos de 1880 com as Memórias Póstumas de Brás Cubas e os contos de Papéis Avulsos. Influências inglesas foram igualmente apontadas por ambos, vindo sempre à baila os nomes de Swift (1667-1745) e Sterne (1713-68). Entretanto, menos do que a procedência européia, interessa notar a vinculação, que se constatou desde o início, do humor machadiano com a sua visão pessimista da História e da Natureza.
Uma leitura de cunho naturalista buscou na vida do autor as causas desse pessimismo: a timidez, a morbidez, certos traços esquizóides, a gagueira, distúrbios oculares, em suma "a doença e constituição de Machado de Assis", título da obra clínica de Peregrino Jr., datada de 1938. Mas, se hoje parece não ter restado nada, ou quase nada, dessas tentativas de etiologia do humor de Machado, ficou, sem dúvida, o reconhecimento da expressão artística de uma difusa melancolia que permeia os enredos e os comentários desenganados do narrador. O que caiu de moda, até segunda ordem, foi a identificação de uma gênese psicossomática desse tom fundamental.
Augusto Meyer e Barreto Filho
A melhor crítica dos decênios de 1930 a 1950 concentrou-se no significado imanente das formas do humor, do tédio e daquele nonsense joco-sério tão entranhado na linguagem da segunda fase de Machado. O que Augusto Meyer e Barreto Filho exploraram nos seus ensaios poderia ser descrito como tentativas de leitura fenomenológica, embora nenhum deles faça praça do método. A caracterização que Augusto Meyer faz do homem subterrâneo é, nesse sentido, exemplar2. Atrás da "pseudo-autobiografia" de Brás Cubas ou do conselheiro Aires, ambos forjadores de memórias, póstumas ou tardias, opera um espírito de dúvida ou negação que relativiza todas as certezas e deita por terra as mais caras ilusões do leitor daquele tempo e do nosso. É essa voz, ou, antes, são os "cochichos do nada", que o crítico-poeta soube escutar e nos transmitir.
Para tanto, forjou conceitos lapidares. Por exemplo, o "perspectivismo arbitrário" de Brás Cubas, matriz do capricho que alinhava bizarramente as confidências do defunto autor. Ou a "atenção divertida e frouxa" que o narrador de Esaú e Jacó dá aos sucessos políticos do fim do Império e do início da República, meros pretextos que bóiam à superfície do texto romanesco. Outros achados: "a necessidade da renovação pelo esquecimento", tema do Memorial de Aires, onde les morts vont vite (vão-se os mortos depressa) e com eles os velhos. Enfim, a ociosidade "como o verdadeiro clima da obra romanesca" nas páginas da maturidade --conceito rico que funde o social e o psicológico, mas que nos faz perguntar por que os pensamentos dos rentistas desocupados dos romances se parecem tanto com as reflexões céticas do próprio Machado de Assis cronista dos anos 1880 e 1890.
Com igual mestria, Augusto Meyer detém-se no trato analítico de personagens e situações, pondo em relevo o cinismo de Brás, "solteirão desabusado", a loucura progressiva de Rubião, a sensualidade coleante de Capitu, a perpétua hesitação de Flora. E, voltando como leitmotiv, aquela "nota monocórdia" do narrador, que intervém com digressões escarninhas ou apenas desconcertantes. Atento aos mínimos movimentos da escrita, Meyer desenhou o mapa interno da mina onde ainda hoje escavam os melhores leitores de Machado.
Em termos de interpretação, a leitura de Barreto Filho vale por ter-se fixado em um núcleo de significados: o espírito trágico que enformaria a obra inteira de Machado, guiando os destinos para a loucura, o absurdo e, no melhor dos casos, a velhice solitária3. A matéria-prima da análise existencial de Barreto Filho é o sentimento do tempo, que suscita indefectivelmente a pergunta sobre o sentido da vida e da morte. Assim, embora seja rica de informações históricas, a Introdução a Machado de Assis acaba situando o roteiro ficcional do autor em um plano metafísico. A mesma tendência já encontrara prenúncios em Afrânio Coutinho, autor de uma Filosofia de Machado de Assis (1940). Não foi essa, porém, a vertente predominante na segunda metade do século 20, quando se buscou dar solidez à figura de um Machado de Assis brasileiro, sensível às contradições de nossa história social.
A Construção De Um Machado Brasileiro
A íntima relação entre o escritor e a sociedade brasileira do seu tempo começou a ser desvendada, como era de esperar, mediante a exploração sistemática da sua biografia. A primeira, e até hoje a melhor de Machado de Assis, foi escrita em 1936, por uma romancista estimável, dotada de singular acuidade psicológica, Lúcia Miguel Pereira4. Embora o seu foco de interesse fosse, em primeiro lugar, o homem Machado com as suas peculiaridades de temperamento e caráter, a biógrafa teve o cuidado de marcar a situação de classe, que, no caso, se configurou como um fenômeno de passagem.
O menino Joaquim Maria nasceu em 1839, em uma quinta no morro do Livramento, de pai mulato (neto de escravos) e mãe vinda ainda criança dos Açores com a família que migrava. Era um casal de agregados que recebia trabalho e proteção de uma rica viúva, dona Maria José de Mendonça Barroso, cujo marido fora senador no Primeiro Reinado. Dona Maria José foi escolhida para madrinha de Joaquim Maria. Aos dez anos, o menino fica órfão de mãe e, aos 15, entra em sua vida a madrasta, Maria Inês, que era mulata como seu pai e que, segundo alguns biógrafos, teria sido uma verdadeira mãe. No entanto, e aqui começa a armar-se o esquema psicossocial de Lúcia Miguel Pereira, nem bem entrado na adolescência, Joaquim Maria sai da chácara e muda-se para a cidade, dando as costas definitivamente à família e ao subúrbio onde até então vivera como dependente.
O rapazinho iria superar, pelo talento e pelo mérito de um esforço ininterrupto, a barreira da classe social a que suas origens humildes poderiam tê-lo relegado. Mas não se cortam impunemente os laços com o passado: os seus primeiros romances modelariam personagens determinadas a subir na vida, como Guiomar, em A Mão e a Luva, e Iaiá Garcia, no romance de mesmo nome. A ambição, misturada com um tanto de ingratidão e dureza nas relações familiares, seria racionalizada e, a rigor, justificada pela voz do narrador como necessária à sobrevivência da personagem. Segundo a intérprete, as figuras femininas que lutam obstinadas para vencer naquele contexto patriarcal dos meados do século seriam travestimentos da alma do jovem Machado, que nelas projetaria o drama recalcado da sua própria ascensão social. Daí por diante, hipocrisia, ingratidão e, no limite, traição seriam motivos recorrentes nos seus romances. A dinâmica social se interioriza e se faz psicologia individual. O narrador tem aguda consciência das forças modeladoras do meio. Sem essa consciência, alerta e sofrida, não seria, aliás, possível a formação do humor machadiano, que morde e sopra, levanta a máscara e logo a afivela de novo para subtrair a evidência, mas deixando em pé a suspeita.
A interpretação de Lúcia Miguel Pereira tem o mérito, ainda hoje não excedido, de fundir classe social, posição do indivíduo e estrutura psicológica diferenciada sem inflar nenhum dos componentes dessa tríade, sinal de um equilíbrio de método que a crítica puramente sociológica e o psicologismo não conseguiriam alcançar.
A construção do Machado brasileiro teria uma carreira longa e afortunada. Para os que negavam a presença da natureza tropical no seu cenário fluminense, Roger Bastide, sociólogo dotado de fino tacto literário, compôs um ensaio notável (em 1940) realçando a força das descrições de paisagens em quase todas as suas narrativas. Para os que acusavam Machado de absenteísta ou alheio aos problemas nacionais, Astrojildo Pereira, pioneiro nos estudos marxistas brasileiros, escreveu uma série de textos que comprovam o permanente interesse de Machado pelos assuntos locais, além das suas sempre citáveis afirmações da "unidade nacional" e do "instinto de nacionalidade". O ensaio antológico "Romancista do Segundo Reinado", que é de 1939, acompanha de perto os nexos "entre o labor literário de Machado de Assis e o sentido da evolução política e social do Brasil".
(Folha online)
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