domingo, 24 de novembro de 2013
UM CONTO DE GISELDA MEDEIROS
SELMA
Ainda a
bordo do avião, fico a pensar em Selma. Como será o nosso reencontro?!
Imagino-a mais madura (quem sabe?)
curada daquele trauma antigo. Luís, ao meu lado, finge não perceber minha preocupação, chamando-me a atenção para
suas leituras. Sei que o seu objetivo é desviar meus pensamentos. No entanto, à
medida que a distância aérea vai sendo vencida, mais eu me vou compungindo
nesta expectativa de novamente reacender toda uma triste história adormecida no
passado.
Ficar três anos longe do Brasil (e sem notícia, pois
assim achara melhor Dr. Henrique) fizera-nos um bem enorme. Estamos inteiros
Luís e eu, para esclarecer (digo melhor, virar) uma página que não fora lida,
muito menos interpretada com exatidão. Como estaria Selma era a minha grande
preocupação. E como reagiria ante o nosso regresso? Sabia-me amada por ela,
para quem fui mais que uma irmã, desde a morte de nossos pais. Estaria ela
melhor? Tomara!
Toda aquela cena de antes jorrou sobre mim,
cascateando dúvidas (como sempre as tive), medo e insegurança. E se aquelas
suspeitas fossem duras verdades? Sempre acreditara no óbvio. Mas, se o óbvio
passar a ser o não óbvio? Como reagirei? Que atitude tomar?
Após a morte de nossos pais (Selma estava com sete
anos), eu, recém-casada, passara a cuidar dela e não me lembro de ter notado,
até essa época, nada de anormal no seu comportamento. Era uma criança precoce,
é bem verdade. Com o passar dos dias, fomos nos tornando seus pais. Luís a
colocava no colo, brincava de cavalinho, de pega-pega, de cabra-cega, enfim,
eram duas crianças peraltas. Esse clima, familiarmente perfeito, durou até o
dia em que a presenciei amuar-se quando Luís a pôs no colo. Era natural,
pensei, já estava mudando: os seios intumesciam-se, os pêlos desenhavam-se no
corpo e a menarca precoce que lhe chegara. Desde então, comecei a notar algo
esquisito no seu comportamento. Fugia para o quarto, sempre com alguma
desculpa, à simples chegada de Luís.
Porque casara muito jovem, aos 14 anos (Luís tinha
30), não sabia bem como assumir a maternidade nesta fase adolescente. Por isso
(e acho que foi aí o meu erro), deixei Luís mais à vontade para iniciá-la nessa
nova fase da vida, uma vez que o via como um verdadeiro pai para ela,
amadurecido e experiente. Ah, adolescência, adolescência! - pensei com saudade.
Não tive tempo para usufruí-la em sua exuberância nem pude vê-la cair sobre
minha irmã. Pobre Selma!
Recriminava-me agora por tê-la abandonado. Digo melhor, não abandonado,
pois a deixara sob a tutela do Dr. Henrique, que nos aconselhara a viagem.
Deixasse com ele as providências quanto ao caso de Selma.
Novamente Luís intervém, dizendo-me estar perto a
chegada. O coração angustia-se. Bate mais forte. Suores. Ondas de frio e calor
percorrem-me o corpo. Fecho os olhos, acomodo-me à poltrona e finjo dormir.
Rememoro o primeiro encontro com Luís, um empresário recém-saído de um
casamento sem filhos. Dizia não querê-los. Este era um ponto discordante entre
nós, porque sempre achei serem os filhos uma peça vital no tabuleiro do
matrimônio. Tornavam-no mais completo, mais sólido, embora entendesse não ser
isso somente o seu sustentáculo. Mas eram o sal necessário ao paladar do casal.
Diante deste meu posicionamento, Luís sempre achava argumentos para provar que
nem sempre eu estava com a razão. Porém o mais intrigante era o fato de ele não
querer filhos e gostar tanto de crianças, principalmente das meninas. Sempre
fora um bom marido, entretanto uma nódoa pairava no nosso céu. Eu sentia
(aliás, sempre senti) algum embaraço na voz, nos gestos dele, quando evocávamos
o passado. “Vamos esquecer isso”, dizia-me sempre que queria retomar o assunto.
Agora mesmo, no avião, enquanto finjo dormir, noto-lhe
uma ansiedade no olhar, um não sei quê perdido que preciso reencontrar. Finge
ler e me examina. Pareço dormir, ele afrouxa a gravata, sério. E, como que
tomado de um certo medo, suspira aflição. Novamente volta a me olhar (sinto-lhe
o hálito preocupado no beijo que deita nos meus lábios e que me queima pele
adentro). O “querida, estamos chegando” arranca-me do meu falso sono.
“Apertem os cintos”... E o pouso em minha terra.
Cumprimentos, abraços, beijos. Nada me distrai. Meu
olhar busca Selma com ânsia dorida. Selma! Selma! (?)
“Olá, Dr. Henrique! E Selma?!”
Selma não viera. Tão moça!
Cheia de interrogações, vi cair sobre Luís o olhar
áspero, carregado de revolta, vindo do Dr. Henrique no “como vão”, secamente
articulado.
(In: SOB EROS E THANATOS)
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