quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014
OS SALMOS: A ANATOMIA DA ALMA HUMANA
03/02/2014
Os salmos constituem uma das formas mais altas de
oração que a humanidade produziu. Milhões e milhões de pessoas, judeus,
cristãos e religiosos de todas as tradições, dia a dia, recitam e cantam
salmos, especialmente os religiosos e religiosas e os padres no assim chamado
“ofício das horas” diário.
Não sabemos exatamente quem seus autores, pois eles recolhem
as orações que circulavam no meio do povo. Seguramente muitos são de Davi
(século X a.C.). É considerado, por
excelência, o protótipo do salmista. Foi pastor, guerreiro, profeta, poeta,
músico, rei e profundamente religioso. Conquistou o Monte Sion dentro de
Jerusalém e lá, ao redor da Arca da Aliança, organizou o culto e introduziu os
salmos.
Quando se diz “salmo de Davi” na maioria das vezes
significa: “salmo feito no estilo de Davi”. Os salmos surgiram no arco de quase
mil anos, nos lugares de culto e recitados pelo povo até serem recopilados na
época dos Macabeus no século II.a.C. O saltério é um microcosmo histórico,
semelhante a uma catedral da Idade Média, construída durante séculos, por
gerações e gerações, por milhares de mãos e incorporando as mudanças de estilo
arquitetônico das várias épocas. Assim há salmos que revelam diferentes
concepções de Deus, próprias de certa época, como aqueles, estranhas para nós,
que expressam o desejo de vingança e o juízo implacável de Deus.
Os salmos testemunham a profunda convicção de que Deus, não
obstante habitar numa luz inacessível, está em nosso meio, morando como que numa tenda
(shekinah). Podemos chegar a Ele, em súplicas, lamentações, louvores e ações de
graças. Ele está sempre pronto para escutar.
O lugar denso de sua presença é o Templo onde se cantam os
salmos. Mas como Criador do céu e da terra, está igualmente em todos os
lugares, embora nenhum possa contê-lo.
Com razão, se orgulhavam os hebreus dizendo: “ninguém tem um
Deus tão próximo como nós”! Próximo de cada um e no meio de seu povo. Os salmos
revelam a consciência da proximidade divina e do amparo consolador. Por isso há
neles intimidade pessoal sem cair no intimismo individualista. Há oração
coletiva sem destituir a experiência pessoal. Uma dimensão reforça a outra,
pois cada uma é verdadeira: não há pessoas sem o povo no qual estão inseridas e
não há povo sem pessoas livres que o formam.
Ao rezar os salmos, encontramos neles a nossa radiografia
espiritual, pessoal e coletiva. Neles identificamos nossos estados de
ânimo: desespero e alegria, medo e confiança, luto e dança, vontade de
vingança e desejo de perdão, interioridade e fascinação pela grandeza do
céu estrelado. Bem o expressou o reformador João Calvino (1509-1564) no prefácio
de seu grandioso comentário aos salmos:
“Costumo definir este livro como uma anatomia de todas as
partes da alma, porque não há sentimento no ser humano que não esteja aí
representado como num espelho. Diria que o Espírito Santo colocou ali, ao vivo,
todas as dores, todas as tristezas, todos os temores, todas as dúvidas, todas
as esperanças, todas as preocupações, todas as perplexidades até as emoções
mais confusas que agitam habitualmente o espírito humano”.
Pelo fato de revelarem nossa autobiografia espiritual, os
salmos representam a palavra do ser humano a Deus e, ao mesmo tempo, a
palavra de Deus ao ser humano. O saltério serviu sempre como livro de
consolação e fonte secreta de sentido, especialmente quando irrompe na
humanidade o desamparo, a perseguição, a injustiça e a ameaça de morte. O
filósofo francês Henri Bergson (1859-1941) deu este insuspeitado testemunho: “Das
centenas de livros que li nenhum me trouxe tanta luz e conforto quanto estes
poucos versos do salmo 23: O Senhor é meu pastor e nada me falta; ainda que
ande por um vale tenebroso, não temo mal nenhum, porque Tu estás comigo”.
Um judeu, por exemplo, cercado de filhos, era empurrado,
para as câmaras de gás em Auschwitz. Ele sabia que caminhava para o extermínio.
Mesmo assim, ia recitando alto o salmo 23: “O Senhor é meu pastor… Ainda que eu
ande pela sombra do vale da morte, nenhum mal temerei, porque Tu estás
comigo”. A morte não rompe a comunhão com Deus. É passagem, mesmo dolorosa,
para o grande abraço infinito da paz eterna.
Por fim, os salmos são poesias religiosas e místicas da mais
alta expressão. Como toda poesia, recriam a realidade com metáforas e imagens
tiradas do imaginário. Este obedece a uma lógica própria, diferente daquela da
racionalidade. Pelo imaginário, transfiguramos situações e fatos detectando
neles sentidos ocultos e mensagens divinas. Por isso dizemos que não só
habitamos prosaicamente o mundo, colhendo o sentido manifesto do desenrolar
rotineiro dos acontecimentos. Habitamos também poeticamente o mundo, vendo o
outro lado das coisas e um outro mundo dentro do mundo de beleza e de
encantamento.
Os salmos nos ensinam a habitar poeticamente a realidade.
Então ela se transmuta num grande sacramento de Deus, cheia de sabedoria, de
admoestações e de lições que tornam mais seguro nosso peregrinar rumo à Fonte.
Como bem diz o salmista: “quando caminho entre perigos, tu me conservas a vida…
e estás até o fim a meu favor” (Salmo 138, 7-8).
Leonardo Boff é autor
de O Senhor é meu Pastor: consolo divino para o desamparo humano,
Vozes 2013.
(in: leonardoboff.com)
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