terça-feira, 26 de agosto de 2014
UM CONTO DE THEREZA LEITE
QUANDO NÓS ÉRAMOS PÁSSAROS
Era
como se os anjos que os protegessem vivessem em
harmonia. Desde o dia em que se apaixonara e a levara embora, escondido.
Naquele dia, pássaros de nuvens prateadas, asas de filigrana, de tão leves,
voavam em bando.
Depois, com
um jeito próprio dele, fora
confinando-a, disfarçadamente, distante de tudo e de todos... Onde não
mantivesse contato com ninguém, só ele. Apenas passasse as mãos na saia,
aperreada, sempre a esperá-lo. Era o jeito
dela.
Naquele
isolamento, ela enfraquecera aos poucos, mente e corpo, até que fora preciso
tira-la dali. Para que ninguém visse. Para que desse tempo.
Caminhara
com ela nos braços, em meio ao mato seco que se debruçava sobre a piçarra, até chegar
`a beira do rio. Repousara-lhe, então, o
corpo, retrato já esmaecido, sobre uma pedra,
a luz fria da tarde abrigando-a.
Nas mãos, a pequena bolsa de maquiagem, com os restos do que tinha, ainda.
Restos usados quando da encenação de dramas.
Como se não houvesse pressa, ele
pegou as pinturas e borrou o rosto dela com uma pasta branca, qual máscara veneziana. Uma rosa carmim, nas
faces, e um botão vermelho na boca. Os
olhos, rodeados a carvão, como dois peixes negros, não permitiam que se visse o brilho da íris. Um
vestido preto, com rosas estampadas;
no pescoço, o colar de bolas grandes e leitosas combinava com a palidez.
Fazendo-a de boneca,
pensou que talvez pudesse reanimá-la. Ainda. Mas ela permanecia estática.
Sacudiu-a como se
balançasse um mamulengo, para pernas e braços se mexerem. Boneca de trapos.
Marcas de dedos no pescoço, ela não reagia. Com as mãos entrelaçadas, tornava - se, cada vez mais,
imóvel, colorida de entardecer.
Teve medo. Olhara à sua volta e não havia a quem pedir ajuda. Arrependeu-se daquela
casa afastada. Das próprias escolhas.
Deixara-a, então, como se repousasse, sobre a
pedra, e saíra, tonto. Não sabia se fugindo, ou se procurando auxílio.
Caminhara estrada acima, aguardando quem
lhe desse acolhida. Mas diante do silêncio que se estendia `a sua
frente, voltara. Voltara para encontrar
a pedra vazia, sem rastros por perto.
- Como tudo aquilo fora possível?
Desde o início, não pudera contê-la nos limites que pensara.
Dotada de personalidade múltipla, ela transmudava-se, de repente. Como se não tivesse um tempo certo. Um lugar certo. O
juízo certo. De uma susceptibilidade à flor da pele, ela doía-se de tudo, nada
a satisfazia, vivia de expectativas. De alienação da realidade. Ansiosa e
depressiva, num eterno aguardo de alguma coisa, que ele não conseguia
alcançar, tornara-se para ele o próprio desespero.
Difícil
conviver com aquela figura refletida em espelhos múltiplos. Atriz e personagem,
eram tantas as facetas em que se partia, ou se multiplicava... Como contê-las?
Corroído de
paixão desdobrara-se, no início, em busca dos tons vermelhos que a cobriam, sem
jamais alcançá-la: quando pensava tê-la abarcado, ela já era outra.
Tornara-se,
assim, obsessivo e opressor.
Confinara-a, primeiro, para tirá-la dos outros. Depois, para que perdesse a sua
multiplicidade. Porque, via, não bastava
a ela a chegada de si mesmo, repetitivo, previsível. Incapaz de surpreendê-la.
A paixão soprada pelo seu corpo não a
despertava. Não sabia sobre qual personagem derramar-se.
Percebeu-se sem a dimensão que ela precisava.
Os próprios
anjos, haviam entrado, então, em
desarmonia.
Tolhera-a,
assim, de tal forma, que ela, estreitada entre quatro paredes, perdera-se no
acúmulo dos objetos. Mistura de enfeites, trajes, cosméticos, miudezas que a
ajudariam a atravessar a noite, sempre
clara: não descansava.
Ele a
procurara ainda, tantas vezes, perguntando-se sob que máscara se escondia
aquela moça que tomara para si. Enquanto ela enfrentava a mesmice, fugindo mais
e mais de si mesma. Para fugir dele... Partindo para refúgios não conhecidos, protegida por mistérios que
ele não alcançava. Mas pagara com moedas de carne. Definhara, até adoecer.
Pernas e braços exangues.
Então a levara. Em busca de socorro. Para não ser culpado pelo que não pretendera fazer de verdade.
Ao voltar,
naquele dia, não a encontrara sobre a pedra. Nenhum sinal nos dias seguintes.
Nenhuma pista nos anos que correram. Até vê-la, tempos depois, carregada por
um homem de braço tatuado, vermelho e de pelos
louros, abarcando o ombro dela.
Colorida, exagerada, múltipla. Pensou no
desfile, de menino antigo, a dançarina em seus rodopios mortais, saltando
`a frente da banda...
Jamais fora
dele...
Jamais fora dele...
(do livro "Mosaicos", 2003)
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