A Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil - AJEB-CE - vem manifestar sua tristeza, em razão do falecimento de sua sócia efetiva,
Hilnê Costalima, ocorrido dia 16 de janeiro deste ano.
E, para rememorar sua vida de escritora entre nós, sua personalidade, seu amor à literatura, postamos, de autoria de Giselda Medeiros, o ensaio "Memória Rebelde".
Memória Rebelde
Giselda Medeiros
Afonso Arinos de Melo Franco assevera em seu livro A
Alma do Tempo (Rio de Janeiro: J. Olympio, 1961) que as memórias são a
reelaboração de um mundo extinto, mas nem por isso menos real.
Oportuna nos é a citada
assertiva quando nos deparamos com Memória Rebelde Fortaleza, Editora ABC,1999), o terceiro livro da lavrense Hilnê Costalima, cujo testemunho, de indiscutível
teor sócio-humanístico, nos traz à tona um registro de personagens que se
haviam perdido ao longo da voragem do tempo. E quis a Autora, como sagaz
observadora do fato sociológico, resgatar com a expressividade de autêntica
memorialista fatos relacionados com essas personagens, realmente, hoje
extintas, mas reelaboradas ali com precisa realidade, conforme atestam seus
relatos.
O mais importante, contudo,
dessas memórias é que a Autora, longe de ir buscar nos corredores do tempo
personagens ilustres que se enfileiram nas galerias honoríficas da história de
sua cidade, mergulhou, ao contrário, no painel de homens e mulheres que, em sua
simplicidade humana, profundamente marcados pelas contradições do meio e do
tempo, desempenharam, dentro de seu contexto, papéis relevantes na construção
das Lavras de ontem. E registre-se que muitos deles deixaram sementes que,
dando continuidade ao labor de seus ancestrais, estão ativamente colaborando
para o desenvolvimento das Lavras de hoje.
O
processo narrativo de Hilnê Costalima, vigoroso em toda a extensão do livro,
leva-nos a sentir suas personagens transtextualizadas em ações, cujos conflitos
dão-lhes uma atmosfera de significados racionais, plenificando-as em sua
perspectiva ontológica. É assim, pois, que nos chegam do passado, ressuscitadas
através da palavra engenhosa de sua recriadora, figuras indeléveis, como:
Xavier, Joana Macaúba, Joaquina e Gregório, Vicente Paroca, a Velha Deota,
Minervina, Chico Caboré, Rosina, Maria Luzia, Mariguêta, Mestre Claudemiro e
Maria Norvina. E, com a mesma clareza de imagem, profundamente impregnada de
forte amor telúrico, mergulha a Autora nas águas do caudaloso rio das
lembranças para evocar, com relevo e profundidade, a visão das saudosas moagens
de cana-de-açúcar, a dinamicidade das brincadeiras de rua e dos casamentos
matutos, a poesia bucólica dos banhos no Gueguel e dos bailes improvisados, o
sentimento religioso, fortemente impregnado no homem e na terra, registrado em
“Os Leilões do Padroeiro e em “A Semana Santa era assim”.
Memória Rebelde nos
dá, pois, uma contribuição da maior relevância à análise sociológico-humana,
quando testemunha a fortaleza indômita da alma popular. E, sendo Hilnê
Costalima, além de investigadora do fato social, exímia artista das letras,
sabe muito bem que “a linguagem é a roupagem do pensamento”. Por
isso, trabalha-a com o cinzel generoso de sua inteligência, dentro de um estilo
elegante, disciplinado, colorido, recheado de
observações de cunho sócio-filosófico, imprimindo à obra o senso de
valorização da grandeza humana, o que faz transcender o caráter de pura
subjetividade.
Escritora de grande
sensibilidade artesanal, já demonstrada em Momentos (1990) e Outras
Janelas (1994), Hilnê Costalima sabe também como preparar seus leitores
para a decodificação de sua mensagem, induzindo-nos a descobrir a essência de nossa própria condição humana.
O amor às Lavras da
Mangabeira e a ternura estampada ao relatar os fatos ocorridos, exorcizando-os
de sua memória, que teima em reelaborá-los compulsivamente, fazem desse seu
mais recente livro, a par da beleza gráfica, uma obra de inquestionável valor,
haja vista ser ele, reafirmamos,
evocador do forte conteúdo dimensional do homem, como ser ontológico, dentro
de sua problemática existência, da qual sabemos, jamais, mesmo com o avanço da
tecnologia, poderá ser usurpada a liberdade de revivenciar, de rememorar, de
reelaborar o passado, pois somente
assim, o homem reaprende e cresce em sua vertical ascendência.
E, em verdade, é esse o
objetivo maior de Hilnê, em sua obra: brigar pelo direito à liberdade de
lembrar, de evocar, para que seja preservada nossa própria história, conforme
ela mesma afirma em seu livro: sem memória as idéias perder-se-iam no limbo
do esquecimento e os próprios nexos do saber desapareceriam, inapelavelmente.
Sendo assim, Memória
Rebelde vem reafirmar que a história de qualquer povo em sua dialética é
feita na proporção exata da dimensão e da complexidade de mitos e realidades,
de juízos e contradições internas.
Por isso, para deleite dos
amantes da boa leitura, recomendamos esta agradabilíssima obra, que tenho o
prazer de apresentar, obra em que vislumbramos personagens limpas, fotografadas
sem dissimulação, sem hipocrisia, pela transparência da câmera de Hilnê Costalima,
sem dúvida, uma das mais expressivas figuras da literatura cearense, quer pela
agudeza de inteligência, quer pelo lastro cultural que ostenta, quer pelo forte
senso de artesã da palavra, que a deixa à vontade no exercício de sua missão de
escritora a inundar o universo literário com fragrâncias de signos e metáforas.
Por tudo isso, aplausos e
louvores para Hilnê Costalima e seu Memória Rebelde, pois vêm sabiamente
reiterar o pensamento de Walter Benjamin, quando diz: “Quem não pode lembrar o
passado, não pode sonhar o futuro e, portanto, não pode julgar o presente”.
Sendo assim, sigamos-lhe o
exemplo: vivamos, evoquemos, e estaremos exercitando formas de conhecimento,
condições de nossa realidade, delineando, desse modo, nossa atuação no processo
histórico das transformações das sociedades humanas, não com a empáfia da
genialidade, mas, simplesmente, como um ser finito, temporal e histórico que
somos.
(Do livro "Crítica Reunida")
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