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domingo, 15 de setembro de 2013

UM OLHAR SOBRE "MOSAICOS", DE THEREZA LEITE - GISELDA MEDEIROS



              Hölderlin nos assevera que é somente na profundeza do sofrimento que ressoa em nós o canto vital do mundo.
              Constatamos a veracidade de tal assertiva, após a leitura de Mosaicos (Fortaleza,    Expressão Gráfica e Editora, 2003), livro de estréia de Maria Thereza Leite, no qual podemos visualizar, através da intimidade da autora com a ficção, o drama visceral de suas personagens na espantosa relação com o seu meio e com o social. Seu poder criacional emerge de cada página, de cada conto lido, em que a grande solidão humana é o fio que tece a túnica de suas personagens, da mesma maneira que é ela, a solidão, que, ao se desprender do papel, em sua abissal existência, vem buscar o aconchego do leitor, tal é a interação autora/leitor, para juntos entoarem seu canto vital.
              Neste livro, vislumbramos uma narradora fluente, conhecedora dos meandros da estrutura ficcional, aquela que, penetrando numa atmosfera, por vezes irreal, é capaz de convencer seu leitor de que as situações (por mais insólitas que sejam) vividas pelas personagens são de incontestável plausibilidade.
              A precisão com que define as personagens, o detalhe, a narração vigorosa apresentam-se-nos sob aquele tom tchekoveano que, indubitavelmente, é a arma principal para a detonação do conflito.
              O conto “Mosaicos”, que intitula o livro, é, em nosso ver, o que mais condensa aquela atmosfera de ansiedade, face à luta que Ana trava com a morte: Ana sabia desde pequena, do que entreouvira entre sussurros e passamentos da mãe – a sua morte era esperada muito cedo. /.../ Mas intuía que, se aquela doença nervosa mostrava-se em ataques súbitos e rápidos, ela teria todo o resto do tempo – os momentos intercalados – para viver.
              Thereza Leite também trabalha, nessa sua obra, o drama social deste terceiro milênio, em que, frente aos avanços da tecnologia, o homem se debate angustiado ante  violência, às drogas, à marginalização que o levam para outros caminhos: a homossexualidade, a loucura, o adultério e o suicídio.
              Vejamos o destino de Jairo, personagem do conto “O ‘olho da libélula’”: Atrevera-se a olhar o cenário, percebendo as marcas das balas no muro. /.../ Poucos muros brancos. Muros desenhados a limo./.../ Muros de lixo. /.../ Muros gravados à bala./.../ Respiro fundo, e o vejo sobre a mesa fria, pela última vez. Inerte. O olhar no vazio. E brado meu mais alto gemido, como se fosse para um filho meu, nesta sala de silêncio: - Logo você, Jairo! Logo você!  Ou o drama interior de Jorge, em “A ave de palha”: Faz tempo que elas vivem nessa simbiose. /.../ Elas pensam que eu não percebo! Quanto a mim não sei explicar. Fui deixando como estava. /.../ Temos um outro triângulo, bem mais difícil de ser aceito: duas mulheres amigas, um homem, e a promessa de um recém nascido. E ainda o conflituoso mundo d’“O colecionador de vitrines”, a debater-se entre a sua realidade e o preconceito social, até a sua opção de lançar-se  “ao espaço, com a dignidade e a beleza de um trapezista”: /.../ quando, à noite, uma insônia sem cura vinha perturbar o seu sono, era o nome de Pedro que repetia bem baixo. Não havia como fugir à sentença: os sons, os cheiros e os toques, ao povoarem a sua meninice, haviam deixado um chão marcado de fortes lembranças, para sempre. E também o delírio de Vicência, no conto “Um varal novo para ‘o inverno’”, em seu afã de fazer bonecas, muitas bonecas “escuras e claras – iguais às moças dos retratos encontrados no armário do quarto de despejo”, entre os pertences do marido ausente: Compridos alfinetes, com a cabeça de bolinha colorida, espetavam o peito dos bonecos de calça azul, prendendo as camisas de xadrez em inúmeros pontos, como se fossem botões. Mas havia alfinetes desnecessários... Alguns, espetados nas costas.
              São assim, engenhosos, os contos de Thereza Leite, em que a descrição, dentro de uma linguagem elegante, serve não só de pano de fundo à ação de suas personagens que, de tão impregnadas à paisagem descrita, chegam a confundir-se de tal modo que ela, a paisagem, toma a ação das personagens, fundindo-se ambas num cenário ativo e perquiridor. Vejamos este trecho de “A Angústia das Árvores do Parque”: Como para me consolar, os oitis, pesados de frondoso verde, entrelaçados, me olharam com olhos acolhedores. Os algarobos, com suas folhas encharcadas, traziam pingos de lágrimas, nas pontas das suas folhas.
              Poderíamos continuar, sem nenhum sinal de canseira, a desbravar os caminhos da escritura de Thereza Leite, se não fora a delimitação do espaço que nos cerceia uma visão mais alongada desse universo rico e permeado de inusitados pousos, onde poderíamos ancorar nosso olhar e descobrir paisagens magníficas, em que a dor e a solidão humanas, longe de despertarem medos, nos entoariam seu canto harmonioso e vital, pois é, nesses instantes, que nos descobrimos gente.  

              Que venham, pois, mais e mais Mosaicos, trabalhados pela exímia mão dessa artesã da palavra que é Thereza Leite, para enfeitarem nosso chão de pequenos peixes coloridos, estrelas do mar num amarelo radiante, sóis alaranjados, verdes pujantes, tiras de céu infinito. 
GISELDA MEDEIROS

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