Papai dirigia sério e taciturno. Aliás, fora sempre assim. Nem um de nós, nunca, ousou desafiá-lo. Quando se calava, era sinal de que queria obediência. Ah, já não existem mais pais como o senhor Raul Moreira de Andrade! Sentíamos orgulho dele. Íntegro. Disciplinador. Um patriarca autêntico.
O carro apalpava as pedras e trepidava dentro de nós. Olhávamos para todos os lados com a indomabilidade de olhos ávidos. Sorríamos. Cantávamos. E papai sério. Lembro-me bem de que o senti triste demais e vi deslizar, tímida, uma lágrima sua. Mal notou-me olhando-o, puxou o lenço, passou-o sobre a testa e, discretamente, enxugou a face.
- É bom fecharmos os vidros. Há muita poeira na estrada.
Mas, eu sabia que disfarçava. Não queria demonstrar o que para ele seria uma prova de fraqueza. Agora, compreendo aquela lágrima calada, que tudo dissera. Ela arde ainda dentro de mim, como se fora uma chama sagrada, alimentando-me o amor, este sentimento capaz de vivenciar o possível e o impossível na história da humanidade. Este amor que constrói, que multiplica, que transcendentaliza.
Dali em diante, não pude mais cantar. Juninho, Daniel e Flávio continuavam tagarelando, alheios à realidade que me apertava, que me oprimia, e para a qual eu não tinha explicação. Só por que pressentira aquela lágrima?! Hoje, sei bem que a vida não nos explica nada, porque a explicação está dentro de cada um de nós. Ela apenas nos prepara o terreno para a semeadura e, quando estamos prontos, é feito o plantio. E eu estava sendo amainada para a colheita da dor.
Enfim, chegamos. A Escola Santa Teresinha parecera-nos simpática. Um prédio amplo, com extensas áreas arborizadas. Um pátio enorme convidava-nos ao lazer. Já imaginávamos as brincadeiras, os jogos, as conversas com novos colegas à sombra daquelas árvores discretas, cujos troncos bordados com corações traspassados por flechas pareciam enormes deuses a proteger aquelas paragens.
Uma religiosa, de sorriso austero, veio receber-nos e nos encaminhou à sala da Madre Superiora. Esta, após perscrutar-nos, com seus olhos de análise, por cima de uns óculos dourados, mandou que sentássemos. Papai nos apresentou, um por um, caracterizando-nos detalhadamente. Enquanto falava, eu o olhava com uma ternura tal que cheguei às lágrimas. Ali, na imaturidade dos meus doze anos, pude experimentar um sentimento inusitado que, àquela época, não sabia como defini-lo - a saudade . E, fora, na antecipação desse ritual, que chorara. Não pude conter-me, quando papai despediu-se e pôs em minha face o mais saudoso de todos os beijos.
- Virei logo vê-los. Logo, logo. Comportem-se e cuidado com a saúde.
Acompanhei o talhe fino e esbelto de papai, até desaparecer no final de um corredor que dava para a saída. Vi-o seguir firme, sem voltar-se, resoluto, imprimindo naquele chão de passos solitários as pegadas de seu caráter, como a nos dizer: “Sigam-nas”.
Adaptamo-nos logo aos moldes disciplinares do colégio, embora carregássemos na alma uma aflição inexplicável. A educação recebida no lar fora a base sólida para aquela rápida acomodação. Éramos tido como exemplo de disciplina. Ah, papai, quanto orgulho de você!
No entanto, o fato mais importante desta nossa história, caro leitor, aconteceu logo na quarta semana subseqüente à nossa chegada ao colégio. Lembro-me bem. Eu estava semi-acordada. Acabara de ler o conto “O Milagre” que a professora nos dera como atividade e, sob o impacto do misticismo de seu desfecho, tentava, ainda que sonolenta, entender-lhe a mensagem. De repente, a porta do quarto ilumina-se e, do clarão, surge a figura impoluta de papai. Na face, a lágrima da estrada. Sem dizer palavra alguma, entrega-me seu relógio de algibeira. E, antes que pudesse abraçá-lo, desfaz-se em penumbra. Esfrego os olhos atordoada. Sou vencida pelo sono.
Na manhã seguinte, o relógio apertado em minha mão e a lembrança de uma lágrima calada, queimando-me.
Aquela foi a última vez que vi papai.
(SOB EROS E THANATOS)
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